“Humanidades Digitais” ?
Um breve panorama
Maria Clara Paixão de Sousa, setembro de 2011
Veja também: Pequeno roteiro de leituras | Manifesto
Conforme já destacou Mathew Kirschenbaum [2010], as discussões sobre “O que são as humanidades digitais” têm proliferado de tal maneira que os textos com este tema já podem ser considerados um gênero à parte. Aqui, faremos um breve panorama do campo, apenas comentando algumas definições interessantes.
O número de centros de pesquisa, associações, publicações, eventos científicos e páginas web associados ao rótulo Humanidades Digitais e o volume de financiamento dedicado a essas iniciativas é impressionante: existem hoje no mundo 114 centros de pesquisa agrupados sob a denominação “Humanidades Digitais”, espalhados em 24 países, e envolvendo investimentos da ordem de 40 milhões de dólares (segundo dados do Centro de Humanidades Digitais do University College).
A Alliance of Digital Humanities Organizations (ADHO), organização que congrega as diversas iniciativas no campo, foi fundada em 2002 – entretanto, a primeira conferência chamada “Digital Humanities” foi realizada já em 1989, como uma ação conjunta da Association for Computers and the Humanities e da Association for Literary and Linguistic Computing; desde então, a conferência tem sido realizada anualmente, e numerosos outros eventos tem sido criados em torno do tema.
Também o número de publicações voltadas às Humanidades Digitais aumentou exponencialmente na última década – publicações eletrônicas como sites, wikis e blogs, e publicações no modelo mais clássico, como livros e periódicos (pode-se lembrar, como emblemáticos, a coleção Topics in the Digital Humanities da Universidade de Illinois, e os periódicos Digital Humanities Quarterly, Digital Medievalist, e Digital Studies – Le champ numérique). Em todas essas esferas, pode-se verificar um crescimento, traduzido no aumento do número de assinantes de periódicos especializados e do número de participantes de congressos, cursos, listas de discussão e associações, em particular entre 2009 e 2011 – como se pode examinar, por exemplo, na listagem agrupada pela Universidade de Nova Iorque.
Essa multiplicação de projetos e iniciativas identificados sob o rótulo de “Humanidades Digitais” ao redor do mundo é acompanhada por uma multiplicação de acepções distintas do próprio rótulo: ele é usado para designar ora um conjunto de práticas, ora um novo campo acadêmico. O chamado O chamado Manifesto das Humanidades Digitais, composto por ocasião do ThatCamp 2010, trata as Humanidades Digitais como uma “transdisciplina” que incorpora os métodos, os dispositivos e as perspectivas heurísticas das ciências humanas e sociais, ao mesmo tempo em que mobiliza as ferramentas e perspectivas singulares abertas pela tecnologia digital.
O debate em torno dessa polissemia tem gerado inúmeras discussões, às quais remetemos aqui apenas de modo tangencial, buscando identificar as características fundamentais de cada ponto de vista.
Comecemos por tentar compreender a dimensão de comunidade de práticas designada pelo termo: P. O’Donell, por exemplo, define “Humanidades Digitais” como uma “atividade interdisciplinar que transfere para os meios digitais o trabalho tradicional com textos, objetos culturais e outros dados, com isso estendendo radicalmente seus usos potenciais“. O Manifesto das Humanidades Digitais ressalta que as práticas nesse campo não negam o passado: apoiam-se, pelo contrário, no conjunto dos paradigmas, savoir-faire e conhecimentos próprios dessas disciplinas, mobilizando simultaneamente os instrumentos e as perspetivas singulares do mundo digital.
De fato, pode-se identificar, como marca comum entre os projetos conduzidos sob o rótulo de “Humanidadaes Digitais”, uma intricada relação entre práticas tradicionais e novas tecnologias. Tome-se como exemplo emblemático dessa transferência do saber acadêmico tradicional ao ambiente digital o Thesaurus Linguae Graecae, projeto pioneiro iniciado em 1972, e que constitui hoje a maior e mais bem trabalhada coleção de textos clássicos sob forma digital. O ambiente de leitura e edição formado pelo Thesaurus exemplifica perfeitamente, também, a radical expansão do uso dos textos como resultado da aplicação das tecnológicas digitais, e a tendência de construção de ferramentas que ajudam na criação e na manipulação de novas formas de representações – tarefas que, para John Unsworth , definem o foco central das práticas em Humanidades Digitais. Nesse ponto importaria lembrar projetos que têm trabalhado na manipulação computacional de outros objetos além dos textos – por exemplo, mapas, como é o caso do HyperCities: a intricada rede de representações de mapas de satélite atuais com mapas antigos de diversas cidades do mundo criada nesse projeto serve de exemplo da mobilização de outros saberes tradicionais, além da filologia, nos projetos de Humanidades Digitais, e é, sobretudo, representativa do caráter transdisciplinar do campo.
Emerge aqui um aspecto crucial: devemos compreender que o termo “transdisciplinar” assume, no caso das Humanidades Digitais, um sentido pleno. Um dos lados dessa transdisciplinaridade é a incorporação dos saberes tradicionais às tecnologias computacionais; o lado oposto é a incursão dos saberes tradicionais no terreno do conhecimento tecnológico: não é possível a um geógrafo, a um historiador, a um filólogo, participar da criação de ferramentas como o HyperCities ou o TLG sem efetivamente compreender como elas funcionam. Não se trata de encomendar um banco de dados, uma plataforma, um desenho de visualização a um “especialista em computação” – trata-se, efetivamente, de conceber classificações, indicadores e formas de leitura em conjunto com os profissionais da área da computação. Esses projetos demandam, assim, uma profunda intercompreensão entre esses pesquisadores, todos eles, neste movimento, tornando-se sujeitos da tecnologia – no caso dos humanistas, aprendendo, efetivamente, a “pensar como seus computadores” .
Essa interpenetração entre antigas “especialidades” acaba refluindo sobre as próprias especialidades envolvidas, abrindo seus poros, transformando-as, remodelando suas fronteiras. Vemos aí a ponte entre as definições que tomam as Humanidades Digitais como uma prática e as que usam o termo para designar um campo de estudos. Podemos compreender agora o alcance da definição de James Cummings, para quem “Humanidades Digitais” designa um campo de estudos cujo objeto de (auto-)reflexão é a própria aplicação da tecnologia digital nas investigações em humanidades.
No mesmo espírito, T. Chiotis toma as Humanidades Digitais como um campo dedicado a investigar os impactos das mídias digitais sobre as disciplinas em que são usadas. A definição de Chiotis se assemelha à de Cummings no sentido de tomar as HDs como um campo de estudos, mas amplia consideravelmente seu objeto: do impacto do digital nas humanidades para o impacto do digital para as disciplinas em geral. De fato, para Chiotis os meios digitais transformam a nossa maneira de “adquirir conhecimento e de experimentar o afeto”. Podemos relacionar isso com o que outros autores têm dito sobre o impacto da difusão digital sobre a nossa relação com o texto e a leitura de um modo geral, e sobre as disciplinas do texto de um modo particular.
Para G. Crane, por exemplo, as novas ferramentas digitais disponíveis para o tratamento de textos fazem vislumbrar a criação de “um espaço dinâmico para a vida intelectual que será tão diferente do precedente como a cultura oral é diferente da cultura escrita“.
Nessa perspectiva, os impactos da união entre as práticas acadêmicas tradicionais e as novas tecnologias digitais atingiriam não apenas o conhecimento “humanístico”, mas sim o conhecimento em geral; e portanto, se tomarmos como um dos objetos de interesse daquilo que se convencionou chamar “as humanidades” a grande questão do conhecimento – sua história, sua epistemologia, seus sentidos – podemos acompanhar a afirmação de Chiotis sobre o interesse das Humanidades Digitais no impacto geral das tecnologias eletrônicas num âmbito geral.
Essa incursão ao reino da técnica computacional, entretanto, termina por demandar das humanidades uma autoanálise crítica – pois, de fato, nos obriga a fiar com novas fibras aquele fio com que se forma o tecido do trabalho das “ciências humanas”: o fio dos nossos olhares de leitura e dos nossos mecanismos interpretativos.
Nesse sentido, podemos terminar essa reflexão com a definição provocativa de Alex Reid: as humanidades digitais, simplesmente, são as humanidades do momento atual.
Assim buscamos mostrar um pouco do que tem sido discutido e realizado no campo das chamadas Humanidades Digitais nos anos recentes. A multiplicidade de pontos de vista sobre este campo em formação, aqui apenas esboçada, enriquece e anima o debate – de fato, a prática das Humanidades Digitais se dá, efetivamente, como constante redefinição do próprio campo.
Pequeno roteiro de leituras | Manifesto
[*] Cf. Kirschenbaum, Matthew G. What is Digital Humanities and what is it doing in your English department?, ADE BullEtin, 150, 2010. <https://humanidadesdigitais.files.wordpress.com/2011/09/kirschenbaum_whatisdigitalhumanities.pdf>