Anotações
O texto abaixo corresponde às minhas anotações para conferências na Universidade de Évora (a convite do Centro Interdisciplinar de História, Cultura e Sociedades, em 6 de outubro de 2015), na Universidade Nova de Lisboa (por ocasião do Congresso de Humanidades Digitais em Portugal, em 8 de outubro de 2015), e na Universidade de Coimbra (junto ao seminário do Programa de doutoramento Estudos Avançados em Materialidades da Literatura, em 12 de outubro de 2015). As anotações são apenas um registro aproximado das falas, acompanhadas também por alguns slides. As referências completas das obras citadas estão nesta página.
Maria Clara Paixão de Sousa
Outubro, 2015
Roteiro
1. Definições
….– Humanidades Digitais, o termo
….– Para além do termo
2. Estado da arte
….– Panorama das Humanidades Digitais
….– O problema dos panoramas
3. Perspectivas
….– Desafios metodológicos
….– Desafios institucionais e políticos
[ ^ ]
Introdução
Quais são as perspectivas para as Humanidades Digitais Globais?
Este é o mote que coloco diante de nós para discussão. Para persegui-lo, seguirei o seguinte roteiro: de saída, debateremos algumas definições de “Humanidades Digitais”, primeiro partindo do uso do termo, e depois tentando ir um pouco além dele. Com base nessa discussão conceitual, tentaremos entender qual o “estado da arte” das assim-chamadas Humanidades Digitais, primeiro desenhando um panorama amplo, e logo levantando alguns pontos problemáticos desse mesmo panorama. Em seguida atacarei a questão das perspectivas hoje colocadas para a relação entre as Humanidades e as tecnologias digitais, sugerindo alguns dos principais desafios metodológicos, institucionais e políticos envolvidos nessa relação. Por fim, tentarei fazer antever alguns caminhos possíveis para superarmos esses desafios e navegarmos na direção das Humanidades Digitais Globais.
[ ^ ]
1. Definições
Comecemos então pelo começo – “o que são as Humanidades Digitais”. Como sabemos, as discussões sobre a definição das Humanidades Digitais formam hoje um universo vasto e repleto de perspectivas conflitantes, que não poderemos explorar com a propriedade que seria devida. Entretanto, o debate em torno das definições inevitavelmente atinge qualquer tentativa de se levantar as iniciativas no campo, e, assim, precisamos ao menos visitá-lo. Para entrar neste mar revolto, podemos primeiro recorrer à âncora da origem do próprio termo, e depois tentar navegar um pouco mais sem ela.
[ ^ ]
Humanidades Digitais, o termo
Susan Schreibman, Ray Siemens & John Unsworth, A Companion to Digital Humanities. 2004.
Se quisermos traçar a origem do termo Digital Humanities, temos que ir até 2004, com o lançamento do livro (hoje clássico), A Companion to Digital Humanities. Segundo Mathew Kirchenbaum (em What is Digital Humanities and what is it doing in your English department?, 2010), foram seus editores que chegaram nesta fórmula para descrever o conjunto de trabalhos expostos no livro, todos voltados para o uso de computação nas humanidades.
Uma década depois, o número de centros de pesquisa, associações, publicações, eventos científicos e páginas web associados ao rótulo Digital Humanities é impressionante, como veremos mais adiante. Entretanto, essa multiplicação de projetos e iniciativas identificados sob o rótulo de “Humanidades Digitais” ao redor do mundo é acompanhada por uma multiplicação de acepções distintas do próprio rótulo.
Começaremos a ver isso, aqui pela nossa famosa Wikipedia, para quem (em 2012) as Humanidades Digitais são um campo de estudos separado das humanidades.
“The digital humanities, also known as humanities computing, is a field of study, research, teaching, and invention concerned with the intersection of computing and the disciplines of the humanities. It is methodological by nature and interdisciplinary in scope. It involves investigation, analysis, synthesis and presentation of information in electronic form. It studies how these media affect the disciplines in which they are used, and what these disciplines have to contribute to our knowledge of computing.” Wikipedia, 2012.
Há uma polifonia forte nesta definição wikipediana. Entretanto, não é apenas neste portal que podemos sentir as confusões das muitas vozes que tentaram definir as Humanidades Digitais. Como vamos ver, esse termo tem sido usado para designar ora um conjunto de práticas, ora um novo campo de estudos ou até mesmo uma nova disciplina, ora, simplesmete, a nova face das antigas humanidades.
Os que parecem compreender as Humanidades Digitais como um conjunto de práticas, uma atividade, estão bem representados nessa definição, encontrada no site colaborativo da Universidade de Alberta, denominado (justamente), “How do you define digital humanities”:
“Digital Humanities is a quickly evolving interdisciplinary activity that not only transfers to digital media but also radically extends the potential uses and impacts of texts, cultural objects and other data”.
Paris O’Donell, How do you define Digital Humanities?, 2011.
Aqui, por exemplo, definem-se as “Humanidades Digitais” como uma “atividade interdisciplinar que transfere para os meios digitais o trabalho tradicional com textos, objetos culturais e outros dados, com isso estendendo radicalmente seus usos potenciais“.
Mais que falar em “atividade interdisciplinar”, alguns tem falado em uma “inter-disciplina”, ou mesmo, como no chamado Manifesto das Humanidades Digitais, uma “transdisciplina”:
“As humanidades digitais designam uma transdisciplina, portadora dos métodos, dos dispositivos e das perspetivas heurísticas ligadas ao digital no domínio das Ciências Humanas e Sociais”.
Aqui, esta nova transdisciplina, seja o que for que se quer expressar com isso, incorporaria os métodos, os dispositivos e as perspectivas heurísticas das ciências humanas e sociais, ao mesmo tempo em que mobiliza as ferramentas e perspectivas singulares abertas pela tecnologia digital. Este Manifesto é um documento representativo, ao qual voltaremos mais adiante. Notemos aqui que ele ressalta que as práticas na transdisciplina Humanidades Digitais não negam o passado das Humanidades: apoiam-se, pelo contrário, no conjunto dos paradigmas, savoir-faire e conhecimentos próprios dessas disciplinas, mobilizando simultaneamente os instrumentos e as perspetivas singulares do mundo digital:
“Para nós, as humanidades digitais referem-se ao conjunto das Ciências Humanas e Sociais, às Artes e às Letras. As humanidades digitais não negam o passado; apoiam-se, pelo contrário, no conjunto dos paradigmas, saber fazer e conhecimentos próprios dessas disciplinas, mobilizando simultaneamente os instrumentos e as perspetivas singulares do mundo digital.”
O interessante é notar que essa interpenetração entre antigas “especialidades” e a computação acabaria refluindo sobre as próprias especialidades envolvidas, abrindo seus poros, transformando-as, remodelando suas fronteiras. Vemos aí a ponte para as definições que tomam as Humanidades Digitais como um campo de estudos mais teórico.
Representativa nesse sentido é a seguinte defiição, de James Cummings, para quem “Digital Humanities” designa um campo de estudos cujo objeto de (auto-)reflexão é a própria aplicação da tecnologia digital nas investigações em humanidades:
“Digital Humanities is an academic field self-reflexively looking at the application of digital technology to humanities fields of enquiry”.
James Cummings, How do you define Digital Humanities?, 2011.
Outros ainda vêem uma mão-dupla nessa reflexão: não apenas as humanidades estariam obrigadas a refletir sobre o impacto do computacional, mas também o computacional se veria desafiado a refletir sobre si mesmo por conta do seu contato com as humanidades. É o caso dessa definição bastante abrangente no sentido conceitual, tomando as Humanidades Digitais como um campo dedicado a investigar os impactos das mídias digitais sobre as disciplinas em que são usadas, como a anterior, mas ampliando-a consideravelmente, do impacto do digital nas humanidades para o impacto do digital para as disciplinas em geral, e vice-versa:
“Digital humanities investigate how digital media affect the disciplines in which they are used. In practice, we are constantly redefining not only the concept of humanities computing but also of computing itself. In this manner, we come to understand how these disciplines when recalibrated for a digital environment contribute to our knowledge of computing; we also come to understand how computing changes the way we acquire knowledge and experience affect.”
Theodoros Chiotis, How do you define Digital Humanities?, 2011.
Por fim, podemos terminar com uma definição formulada de maneira bastante provocativa, mas que reflete uma terceira tendência importante: as humanidades digitais, simplesmente, seriam as humanidades do momento atual:
“The Digital Humanities are just the humanities of the present moment”
Alex Reid, How do you define Digital Humanities?, 2011.
A multiplicidade de pontos de vista sobre este campo em formação, é, como vemos neste esboço, bastante animada – de fato, a prática das Humanidades Digitais parece se dar, efetivamente, como constante redefinição do próprio campo.
Mas isso é verdadeiro a tal ponto que alguns tem falado em um campo em eterna crise de identidade. É o que salienta Jan Christoph Meister no excelente artigo “As Humanidades digitais somos nós, ou a insustentável leveza da metodologia compartilhada”. Para Meister, essa crise de identidade se reflete numa transformação semântica do próprio termo, na qual teria já acontecido um apagamento da relação de qualificação entre “Humanidades” e “Digitais”, formando-se um termo congelado, plasmado, terceiro. Isso se mostraria entre outros no neologismo e-Humanities, e-Humanidades, que já começa a aparecer em alguns autores:
“Identity crises abound: until yesterday we did Humanities Computing, today it’s Digital Humanities, and the more common our practice becomes the shorter and less descriptive its designation seems to get, as the somewhat opaque neologism eHumanities proves. From a linguistic and philosophical point of view the change in terminology, and in particular the emerging next-generation terminology, signals a gradual naturalization of the concept by way of an obscuration of the predicate-argument structure. The evolving newspeak adds to the plethora of terminological nouveau vague constructs whose differentia specifica is marked by a single letter. From iPhone to iHumanities is but a step”.
Jan Cristoph Meister, DH is us or on the unbearable lightness of a shared methodology, 2012.
Antes de chegarmos, como teme Meister, às i-Humanities, i-Humanidades, talvez seja necessário ir além do termo para compreendermos o fenômeno antes de tentarmos mapeá-lo, como é nosso objetivo aqui.
[ ^ ]
Para além do termo
De fato, o uso da expressão “Humanidades Digitais” pode ser apenas a ponta visível de um processo mais profundo: a crescente integração de tecnologias computacionais às pesquisas em ‘humanidades’ – processo que alguns consideram inexorável, e que colocaria desafios importantes para as humanidades e suas práticas tradicionais. Para alguns pesquisadores, essa integração e os desafios que ela coloca mereceram atenção suficiente para compor uma comunidade de práticas unida em torno de um termo próprio, como vimos.
Antes de 2004, um outro termo comum para designar esta interpelação entre as humanidades e as tecnologias computacionais, na língua inglesa, era “Humanities Computing”- computação em humanidades, que John Unsworth, por exemplo, definiu como uma área dedicada à construção de ferramentas que nos ajudam ou a criar novas representações para as nossas fontes primárias ou a manipular e analisar essas fontes:
“For as long as there has been humanities computing, humanities computing has been about the representation of primary source materials, and about building tools that either help us create those representations or help us manipulate and analyze them”.
John Unsworth, Digital Humanities Beyond Representation, 2006.
Podemos sugerir que o termo “Digital Humanities”, bem como as associações e iniciativas internacionais que se reúnem sob sua designação ao longo dos primeiros anos do século 21, surgem em um contexto no qual a constatação dos desafios envolvidos nessas práticas agudiza-se. As práticas e seus desafios, entretanto, precedem o termo.
Como sinal máximo dessa precedência, tomemos aqui o trabalho do jesuíta italiano Roberto Busa em torno da obra de São Tomás de Aquino, iniciado já na década de 40 do século passado, com seu Corpus Thomisticum, pioneiro do uso de computação nas humanidades.
Corpus Thomisticum, www.corpusthomisticum.org
Este trabalho de reunião, indexação e anotação linguística da obra de S. Tomás de Aquino passou por todas as etapas da tecnologia computacional: do uso de quilômetros de fichas de papel perfurado, ao uso das mais recentes tecnologias de difusão virtual dos textos. Em 2004, em seu prefácio ao Companion for Digital Humanities, Perspectives on the Digital Humanities, Busa recapitula todas essas etapas:

“During World War II, between 1941 and 1946, I began to look for machines for the automation of the linguistic analysis of written texts. I found them, in 1949, at IBM in New York City. Today, as an aged patriarch (born in 1913) I am full of amazement at the developments since then; they are enormously greater and better than I could then imagine.
Digitus Dei est hic! The finger of God is here!”
Roberto Busa, Perspectives on the Digital Humanities, 2004.
Aqui está o dedo de Deus, diz o trocadilho irresistível de Busa, para quem o uso da informática trouxe, para o trabalho humanístico erudito, a perspectiva do que ele denomina a “hermenêutica informática”.
Além do corpus de Roberto Busa, podemos lembrar também o Thesaurus Linguae Graecae, projeto pioneiro iniciado em 1972, e que constitui hoje a maior e mais bem trabalhada coleção de textos clássicos sob forma digital.
Thesaurus Linguae Graecae, www.tlg.uci.edu
O ambiente de leitura e edição formado pelo Thesaurus exemplifica perfeitamente a “radical expansão” do uso dos textos como resultado da aplicação das tecnologias digitais, e também a tendência de construção de ferramentas que ajudam na criação e na manipulação de novas formas de representações – tarefas que para alguns, como vimos, definem o foco central das práticas em Humanidades Digitais.
Mas o ponto mais importante desses dois exemplos é que eles mostram que, apesar da “novidade” do termo Digital Humanities, cunhado como vimos por volta de 2004, e dali espalhado para diferentes línguas e ambientes de pesquisa (como veremos a seguir), não há tanta novidade na prática de juntar as humanidades com as tecnologias computacionais. Essa junção caminha desde a invenção mesma dos computadores, graças ao olhar visionário de humanistas como Busa.
Aqui, trato as ‘Humanidades Digitais’ como um ‘campo’ apenas por acomodação a um vocabulário corrente. Minha visão sobre as ‘Humanidades Digitais’ é mais radical: entendo que as tecnologias de difusão digital da informação transformaram profundamente o trabalho tradicional das humanidades, de modo que esse trabalho está hoje, inevitavelmente, inscrito na lógica da tecnologia digital. Entretanto, essa profunda transformação ainda não é plenamente percebida. Não se trata de uma mudança homogênea – ao contrário, varia no tempo, varia no espaço, e varia em diferentes especialidades. Assim, a expressão ‘Humanidades Digitais’ faz sentido, hoje, como referência a uma comunidade de pesquisas que já se ocupa ativamente dessa nova forma de trabalhar nas humanidades. Falarei mais sobre isso mais à frente. Agora, fundada nessa avaliação, farei um breve percurso pelos mapeamentos disponíveis sobre as iniciativas mundiais filiadas às assim chamadas “Humanidades Digitais”.
[ ^ ]
2. Estado da arte
……..Panorama das Humanidades Digitais
……..O problema dos panoramas
[ ^ ]
Panorama das Humanidades Digitais
Vamos introduzir este breve panorama apresentando alguns números brutos que tentariam responder a uma pergunta aparentemente simples: “quantos centros de pesquisa em Humanidades Digitais existem hoje no mundo?”
Segundo uma pesquisa muito conhecida e citada, realizada no Centro para as Humanidades Digitais do University College de Londres, havia em 2012 114 centros de pesquisa em Humanidades Digitais em 24 países do mundo.
Melissa Terras, Quantifying Digital Humanities, 2007 (2012). UCL Center For Digital Humanities,
Note-se um ponto interessante: boa parte dos centros listados por este levantamento situam-se na anglofonia (problema a que voltaremos mais adiante). Enquanto isso, na francofonia, segundo um levantamento atual da Universidade de Paris – Carte des digital humanities francophones – haveria atualmente 62 centros em Humanidades Digitais “francófonos” apenas na Europa (60 na França, um na Suíça e um em Luxemburgo).
Carte des digital humanities francofones: Recensement collaboratif des institutions de recherche, développement et enseignement des humanités numériques en français, 2014.
Notemos que no mapa anterior havia apenas 5 centros na França em 2012. O que talvez nos falte, neste ponto, é saber o que cada um desses levantamentos de fato entende por “centro de humanidades digitais”.
Um único levantamento em que podemos encontrar uma definição inequívoca do que seria tal coisa é o levantamento feito em 2008 por Diane Zorich para o Council on Library and Information Resources dos Estados Unidos, A survey of digital humanities centers in the United States:
“A digital humanities center is an entity where new media and technologies are used for humanities-based research, teaching, and intellectual engagement and experimentation. The goals of the center are to further humanities scholarship, create new forms of knowledge, and explore technology’s impact on humanities-based disciplines”.
Diane Zorich, A survey of digital humanities centers in the United States, 2008.
Segundo esse estudo, havia nos EUA 32 centros de pesquisa em Humanidades Digitais em 2008 (o mais antigo deles fundado em 1978, e o mais recente em 2005). Notemos que, no levantamento de Terras, seriam 44 centros em HD naquele país em 2012. A inconsistência não parece ser meramente temporal, pois esses 44 não incluem todos os 32 pesquisados por Zorich.
Diante dessa aparente dificuldade de se definir afinal o que é um centro de pesquisas em Humanidades Digitais, poderia ser interessante pesquisar o números de projetos na área, não necessariamente centros de pesquisa.
Uma iniciativa recente, liderado pelo pesquisador Alex Gil, mapeou 80 projetos de pesquisas em humanidades digitais ao redor do mundo, compondo um mapa abrangente em termos geográficos, mas que não se pretende exaustivo, dada a natureza do projeto.
Alex Gil, Around DH in 80 days, 2014. www.arounddh.org
O que o trabalho de Gil nos mostra de modo singularmente claro é que os projetos em Humanidades Digitais parecem se espalhar, no mapa-múndi, para bem além dos limites visitados pelo levantamento inglês de 2012.
No mundo de fala ibérica, o trabalho mais recente de mapeamento foi realizado como resultado da iniciativa Dia de las humanidades digitales/Dia das humanidades digitais de 2013, um projeto de publicação coletiva com 70 projetos inscritos, dos quais 57 em espanhol e 13 em português.
Ernesto Priani et al., Las humanidades digitales en español y portugués. Un estudio de caso: DíaHD/DiaHD, 2014,
Mais adiante voltaremos a falar dessa iniciativa, que pretendeu compreender e mapear o aumento recente de projetos ligados às HD na península ibérica e na ibeoramérica. Tentemos agora focar mais um pouco nossos olhares, voltando-nos para a lusofonia.
No caso específico da Língua portuguesa, um marco importante para as Humanidades Digitais foi a fundação da Associação das Humanidades Digitais, entidade que pretende agregar, promover e apoiar iniciativas de pesquisa que integrem tecnologias computacionais à investigação em humanidades em português.
AHDig, adhig.org
A iniciativa de fundar a Associação surgiu no I Seminário Internacional em Humanidades Digitais no Brasil, em outubro de 2013, há quase exatos dois anos, na Universidade de São Paulo, no Brasil. Um ano depois de sua fundação, e há um ano atrás hoje, a AHDig contava com 100 participantes, representando 12 Projetos, 4 Grupos de Pesquisa, 4 blogs independentes; em 5 países, 35 instituições de ensino e pesquisa, e 23 áreas de conhecimento.
Entretanto, os hoje mais de 100 participantes da AHDig não são, naturalmente, os únicos pesquisadores envolvidos com as Humanidades Digitais no mundo de língua portuguesa.
Sabemos que há, em diversos pontos da lusofonia, outros pesquisadores nas áreas de letras e linguística, história, ciências sociais e filosofia preocupados em compreender as tecnologias digitais de difusão da informação, e ocupados em participar ativamente de seu desenvolvimento – embora não façam uso do termo “Humanidades Digitais”.
Uma questão interessante que se coloca é – porque não fazem uso do termo? Serão as Humanidades Digitais menos valorizadas que as Digital Humanities?
De fato, os organizadores do Dia de las humanidades digitales/Dia das humanidades digitais notamos algo semelhante para o mundo ibérico em geral. Como afirmam no artigo recentemente publicado com a avaliação dos impactos da iniciativa, no mundo ibérico, aparentemente, a utilização do termo Humanidades Digitais/Humanidades Digitales parece não ser tão valorizada como o uso do termo Digital Humanities:
“Para Meister (2012, 78) lo digital en las HD significa que diversas disciplinas humanísticas comparten un grupo de metodologías comunes identificadas como digitales. En el caso de las HD en español y en portugués éstas son sobre todo herramientas y aplicaciones textuales relacionadas con la creación de corpus, pero su utilización todavía no se valora, de manera definitiva y por parte de toda la comunidad, como una práctica que modifique de manera total el concepto de humanidades”. (…)
“Dicho en otras palabras, una característica de la emergencia de las HD en español y en portugués es la tensión entre la resistencia a asumir que las humanidades se definan por lo digital y el interés por agruparse y discutir bajo esa terminología”. (…)
“En suma, el giro semántico de las humanidades en castellano y portugués hacia las humanidades digitales, se produce aún con dificultades en la identificación de los humanistas como humanistas digitales. Esto muestra dos cosas, por un lado, subraya el hecho de que el giro se produce desde las humanidades (la filosofía, la historia, la filología, la lingüística, la literatura) hacia lo digital; por otro, muestra los distintos grados de compenetración de los miembros de la comunidad con el discurso de las humanidades digitales”.
Ernesto Priani et al., Las humanidades digitales en español y portugués. Un estudio de caso: DíaHD/DiaHD, 2014,
O que vemos aqui, portanto, é o que o termo Digital Humanities não tem um uso consistente em todas as partes do mundo, em todas as suas formas traduzidas. Já havíamos visto mais atrás que o termo também não é estável no tempo – ou seja, práticas muito próximas ao que hoje chamaríamos Humanidades Digitais existiram no passado, sem que tivesse surgido o termo. Vimos também, antes, como as definições do termo são polissêmicas.
Ora, se temos nas Humanidades Digitais um termo que é usado com tamanha inconsistência conceitual, temporal e espacial, podemos compreender a dificuldade em mapear o campo que ele designa, como estamos tentando fazer aqui.
[ ^ ]
O problema dos panoramas
A meu ver, os números encontrados nos levantamentos internacionais e regionais sobre as Humanidades digitais não podem ser comparados entre si, não apenas por utilizarem diferentes metodologias, mas também, porque são frutos de diferentes concepções de Humanidades Digitais. Se juntarmos todos os números que vimos até agora, teríamos o seguinte.
114 centros no mundo (Terra, 2012)
62 centros na francofonia (UPI, 2014)
32 centros nos EUA (Zorich, 2008)
79 projetos no mundo (Gil ,2014)
16 projetos e grupos na lusofonia (AHDig, 2014)
Temos aí mapeamentos que se limitam aos grupos explicitamente filiados às Humanidades Digitais (seja por usarem o termo “Digital Humanities” em sua denominação, seja por serem filiados às associações regionais ou internacionais que por sua vez usam o termo em sua denominação), e deixam de levar em conta pesquisadores que não usam a terminologia, mas conduzem pesquisas em humanidades com integração intensiva de tecnologias digitais. Algumas pesquisas procuram definir o campo de forma mais ampla, e passam a incluir nos levantamentos centros de pesquisa nos quais se pode identificar uma forte aliança entre humanidades e tecnologia, mas que não necessariamente se filiam à denominação “Digital Humanities”. Isso, me parece, explica em parte as discrepâncias numéricas que encontramos.
Um exemplo de levantamento sobre o estado da arte na relação entre as humanidades e as tecnologias digitais feito a partir de uma definição bastante abrangente, e de fato, o único dos que pesquisei que de fato foge à terminologia “Digital Humanities”, é o relatório preparado por uma Comissão especial designada pelo American Council of Learned Societies para realizar um levantamento sobre a estrutura informática para as humanidades e ciências sociais nos EUA, em 2006.
Esse levantamento toma como âncora para definir um centro que necessita de estrutura informática os produtos gerados pela pesquisa de cada grupo – a Digital Scholarship, ou seja, a produção acadêmica em meio digital, algo que envolve algo mais que apenas a publicação de artigos em linha, como eles mesmo definem:
“What Is Digital Scholarship?
In recent practice, “digital scholarship” has meant several related things:(a) Building a digital collection of information for further study and analysis
(b) Creating appropriate tools for collection-building
(c) Creating appropriate tools for the analysis and study of collections
(d) Using digital collections and analytical tools to generate new intellectual products
(e) Creating authoring tools for these new intellectual products, either in traditional forms or in digital form.”
Assim, da perspectiva desse documento, o trabalho da “produção acadêmica digital” (numa tradução livre) incluiria todas as atividades tradicionais das humanidades que agora realizadas em meio digital.
Notemos como essa perspectiva se encaixa nas definições mais abrangentes para as quais as Humanidades Digitais são simplesmente a face atual das humanidades. A se tomar essa perspectiva mais ampla, numa tentativa de quantificar as iniciativas em Humanidades Digitais, seria necessário levantar todas as pesquisas em humanidades que fazem uso da computação – incluindo, por exemplo, as iniciativas de digitalização de bibliotecas e arquivos históricos. Observemos que, neste caso, o levantamento transbordaria para fora das Universidades e Institutos de Pesquisa tradicionais, e teria de incluir (por exemplo) o trabalho das equipes das bibliotecas e arquivos institucionais, compondo certamente um retrato bastante diferente do campo em relação àqueles que se prendem às áreas acadêmicas de “humanidades” no sentido mais clássico.
Nesse sentido, há um trabalho de extremo interesse, que procura mapear as iniciativas em Humanidades Digitais segundo suas disciplinas ou lugares de origem. Em The landscape of digital humanities, Patrik Svensson oferece uma tentativa muito interessante de tipologia das Humanidades Digitais segundo as diferentes perspectivas que ele considera relevantes sobre o campo – das quais ele destaca a perspectiva dos estudos de Ciência da Informação (Perspectives from Library and Information Science), dos estudos de Cibercultura e Estudos digitais críticos (Cyberculture Studies and Critical Digital Studies), e ainda as Humanidades Digitais como ativismo e prática artística (Digital Humanities as Activism and Artistic Practice).
“Over the last five years, there has been a surge of activity in the multifarious emerging field often referred to as “digital humanities.” Of course, humanities-based engagement with information technology is not new, but we are now seeing a rich multi-level interaction with the “digital” that is partly a result of the persuasiveness of digital technology and the sheer number of disciplines, perspectives and approaches involved. Humanists are exploring differing modes of engagement, institutional models, technologies and discursive strategies. There is also a strategy-level push for the digital humanities which, among other things, affects university research strategies, external funding and recruitment.”
Patrik Svenson, The Landscape of Digital Humanities, 2010.
Mas se há iniciativas em Humanidades Digitais ligadas a universidades e institutos de pesquisa tradicionais e a outros espaços concretos de trabalho, como bibliotecas e arquivos – há também agrupamentos que seguem outros paradigmas, em particular agrupamentos exclusivamente virtuais.
Essas formas de reunião alheias ao sistema tradicional, fora das Universidades e centros de pesquisa institucionalizados – essa forte tendência a agregações virtuais nas Humanidades Digitais, é de fato considerada, por alguns, como uma das marcas mais importantes do campo. Com isso, fundamentalmente, um levantamento que desejasse levar em conta “todas as iniciativas em Humanidades Digitais no mundo” teria como universo de partida “a internet”.
Esse tipo de levantamento teria dificuldades evidentes, e ainda guardaria um aspecto marcante de pesquisa tradicional, pois seria um mapeamento direcionado do mapeador para o mapeado. A outra opção seria partir do paradigma inverso, e fazer com que os pesquisadores busquem mapear-se. É assim que podemos entender algumas agregações virtuais nas Humanidades Digitais, de fato: elas conformam um universo de análise privilegiado que os moldes tradicionais de pesquisa deixariam de lado.
Exemplos disso são as sucessivas edições do Day of Digital Humanities, um projeto de publicação coletiva que vem reunindo desde 2009 debates e projetos sobre o campo e que, em 2013, teve pela primeira vez uma edição em Português e Espanhol.
Dia das Humanidades Digitais 2013, dhd2013.filos.unam.mx/pt-br
Os “dias das humanidades digitais” têm reunido as definições que são colocadas anualmente à disposição em uma Wiki da Universidade de Alberta (algumas das quais discutimos mais atrás).
How do you define Digital Humanities? – http://tapor.ualberta.ca/taporwiki/index.php/How_do_you_define_Humanities_Computing_/_Digital_Humanities%3F
Além dessas iniciativas cíclicas, há alguns portais permanentes que tem sido tomados como pontos de reunião fundamental das Humanidades Digitais mundialmente, como o Center Net http://digitalhumanities.org/centernet, o 4 Humanities http://4humanities.org, e o Digital Humanities Now.
Digital Humanities Now, digitalhumanitiesnow.org
O “conjunto” formado por esses portais, por blogs esparsos, e pelas as redes sociais (“Twitter”, e em menor escala, “Facebook”) termina por constituir, de fato, o “lugar” onde os participantes dessa comunidade ao mesmo tempo altamente difusa e interconectada se encontra e se identifica.
Para alguns, isso indica a formação de uma nova cultura acadêmica. De fato, diante das formas pouco ortodoxas de agregação, alguns pesquisadores têm afirmado que uma das características centrais das Humanidades Digitais é a de desafiarem o sistema universitário e a organização acadêmica tradicional.
É o que sugere, por exemplo, Matthew Gold, em um projeto bastante inovador que pretende debater as Humanidades Digitais em moldes não-institucionais.
Matthew K. Gold, ed., Debates in the Digital Humanities, 2012.
Mas para compreender essa perspectiva, o documento mais interessante, sem dúvida, é o chamado “Manifesto das Humanidades Digitais”: Redigido por ocasião do ThatCamp, “des-conferência” de Humanidades Digitais realizada em Paris em 2010 (That Camp: User-generated Un-conference on Digital Humanities – http://tcp.hypotheses.org/)
Manifesto das Humanidades Digitais, 2010.
Versão em Português, 2013.
O documento, que procura expressar o estado da arte e as perspectivas atuais do campo, traz uma interessante declaração final do Manifesto, que menciona um aspecto fundamental para a compreensão das Humanidades Digitais: o campo se constrói como “uma comunidade de práticas solidária, aberta e de amplo acesso“, reivindicando a “integração da cultura digital na definição da cultura do século XXI“. O Manifesto afirma, em seu ponto número 1, que a opção da sociedade pelo digital teria alterado e questionado as condições de produção e divulgação do conhecimento.
A opção da sociedade pelo digital altera e questiona as condições de produção e divulgação do conhecimento.
Essa declaração ajuda a compreender a centralidade conferida pelas Humanidades Digitais aos recursos eletrônicos de publicação, comunicação e debate. Passando ao largo da discussão epistemológica que esse tema traria, aqui queremos apontar as dificuldades que essas novas formas de organização colocam para os mecanismos tradicionais e instituídos de mapeamento e avaliação acadêmica.
Isso nos leva ao primeiro dos desafios hoje abertos para o campo, que é seu desafio metodológico. Esbarramos em um ponto delicado, que é o debate sobre o estatuto científico das Humanidades Digitais. Ou seja: além de fazerem parte de uma nova cultura; além de serem um campo disperso e difícil de definir – de que forma, exatamente, as Humanidades Digitais podem contribuir para o desenvolvimento das humanidades?
É o que tentamos discutir a seguir, ao iniciar o debate sobre as perspectivas que se abrem para as Humanidades Digitais Globais.
[ ^ ]
3. Perspectivas
……..Desafios metodológicos
……..Desafios institucionais e políticos
[ ^ ]
Desafios metodológicos
“We have infinite computer power at our fingertips, and without much thought you can create an infinite amount of nonsense.”
Russell Betts,Colloquium on Digital Humanities and Computer Science, 2009.
Uma grande questão que se coloca atualmente, nos debates sobre as Humanidades Digitais, é entender se elas são de fato um campo de inovação científica, ou se são nada mais que uma tendência da moda. As Humanidades Digitais surgem hoje como um campo chamado de “novo”; “moderno”; “atual; “dinâmico”; mas que também tem recebido adjetivos correlatos negativos, como “irrelevante”, “superficial”, “passageiro”.
Nos países em que “Digital Humanities” são um termo em destaque há pelo menos uma década, isso tem gerado considerável polêmica. Surgem recentemente, inclusive, congressos e publicações com críticas agudas ao campo, dos quais podem ser citado o congresso “The dark side of digital”, de 2013, e o artigo “Against Digital Humanities”, de Stephen Marche.

“The phrase “digital humanities” produces instant titillation and an equally instant sense of fading comedy. (…) That’s what the digital humanities is: yet another next big thing...”
Stephen Marche, Literature is not Data: Against Digital Humanities, 2013.
Somada à dispersão do campo, de que tratamos acima, a tendência à adesão rápida e a-crítica ao atraente universo da aplicação das tecnologias nas humanidades tem sido o principal objeto de preocupação no âmbito das Humanidades Digitais. Quem saberá avaliar se determinado projeto propõe algo efetivamente “novo”; “moderno”; “atual; “dinâmico”; ou simplesmente “irrelevante”, “superficial”, e “passageiro” – e, para alguns, uma sensação – até – cômica?
De um ponto de vista mais científico, a questão que precisaria ser colocada, para as “Humanidades Digitais”, seria, inicialmente:
Que perguntas as Humanidades Digitais podem responder que não podem ser respondidas pelos trabalhos tradicionais?
Mas mais que isso, há uma segunda questão:
Que perguntas as Humanidades Digitais podem fazer que não podem ser feitas pelos trabalhos tradicionais?
Na tentativa de respondê-la, citarei um exemplo apenas ilustrativo, na minha própria área de pesquisa, a linguística histórica e computacional – os corpora eletrônicos com anotação linguística automática (método explicado, com maior detalhe, no artigo O Corpus Tycho Brahe: contribuições para as humanidades digitais no Brasil).
Anotação sintática e de cadeia anafórica – Corpus Tycho Brahe & Projeto Histórias do Brasil
Um corpus eletrônico anotado é um conjunto de textos trabalhado de forma a vir a ser legível por uma programação computacional, permitindo posteriormente uma busca automática por estruturas sintáticas ou categorias semânticas, lexicais (etc.) pré-determinadas. Em parte, talvez, pela interpretação imediata do termo “automático”, é comum a noção de que a grande vantagem (e, para alguns, a grande falha) do trabalho fundado em corpora anotados é que ele possibilitaria análises “mais rápidas” e “mais fáceis” que as convencionais. Entretanto, o termo “automático”, em linguística computacional, é usado em sentido estrito, pressupondo uma etapa lógica artificial na análise.
O interesse linguístico do corpus anotado pouco tem a ver com alguma “rapidez” ou “facilidade” nos procedimentos (até porque essa rapidez e facilidade são inteiramente ilusórias, ao menos da perspectiva dos linguistas que produzem os corpora). Do ponto de vista da análise linguística posterior à anotação, a principal contribuição da preparação computacional dos textos é a segurança de um conjunto de dados amplamente comparáveis entre si (já que apenas a anotação consistente dos dados permite o processamento por programações lógicas). Essa consistência, que pode ser aplicada em volumes considerados de textos, significa que podemos usar o corpus eletrônico para encontrar respostas que não poderiam ser encontradas em um conjunto de textos não trabalhado computacionalmente.
Na outra ponta do processo, ou seja, da perspectiva da construção dos corpora com anotação sintática (como na linguística computacional em geral), a questão efetivamente interessante que se coloca para o linguista são os desafios envolvidos na codificação das análises humanas em formatos logicamente processáveis. Noutros termos: o desafio de explicitar, para uma máquina, o que um ser humano sabe inconscientemente. O trabalho computacional, ao menos para o linguista, é centralmente um trabalho de explicitação de regras, relações conceituais e interpretações que de outra forma poderiam permanecer implícitas, subjetivas, internalizadas. Nessa ponte entre a análise humana e a análise da máquina, a meu ver, reside o principal ponto de interesse científico do trabalho em Humanidades Digitais na área da linguística. Essa ponte, notemos, precisa ser construída pelo estudioso que deseje explicitar e representar computacionalmente um conjunto de textos e as propriedades linguísticas ali encerradas; e este é um trabalho profundamente desafiante que reflui, de muitas formas interessantes, na visão que podemos ter da língua, sua organização e suas estruturas. De fato: essa refluência faz surgir perguntas que nunca surgiriam no trabalho fora da lógica computacional.
Este refluir da lógica computacional sobre o nosso olhar sobre as estruturas da língua é um exemplo de impacto do computacional sobre as humanidades em um nível de profundidade muito pouco debatido. Lembra, entretanto, o que tratou John Unsworth em Forms of Attention: Digital Humanities Beyond Representation, ao explorar as transformações do trabalho computacional nas humanidades no sentido de seu impacto sobre as formas de atenção às nossas fontes primárias:
“I think we are arriving at a moment when the form of the attention that we pay to primary source materials is shifting from digitizing to analyzing, from artifacts to aggregates, and from representation to abstraction.”
John Unsworth, Forms of Attention: Digital Humanities Beyond Representation, 2006.
Para prosseguir nesse tema das nossas formas de atenção, leitura e relação com nossas fontes primárias, busco agora um exemplo talvez um pouco menos árido, desta vez comentando os efeitos da disponibilidade de textos no ambiente digital sobre o jovem em formação nas disciplinas de humanidades.

Recorro para isso a uma anedota pessoal: em 2012, por ocasião da organização de um grupo de leituras com alunos da Universidade de São Paulo, em torno do clássico “As palavras e as coisas” de Michel Foucault, coloquei à disposição dos alunos uma “biblioteca virtual” com ligações para as versões digitais de 54 obras citadas por Foucault nos capítulos I a IV (Pequena biblioteca virtual para ler ‘As palavras e as coisas’). Na ocasião, encantou-me a possibilidade de uma leitura unida ao acesso a todos os livros e imagens mencionados por Foucault naquele texto que subitamente parecia tornar-se tão menos hermético, tão mais compreensível… Um efeito especial dessa força imagética é sentido na leitura do capítulo II, A Prosa do Mundo, no qual o autor discute o poder das analogias visuais nos tratados quinhentistas (como procurei explorar no breve ensaio Ler a prosa do mundo hoje, no blog do nosso grupo de pesquisas). A possibilidade de consultar as gravuras comentadas por Foucault, como quem consulta um álbum ilustrado, parece transformar inteiramente a experiência da leitura deste capítulo.


Subitamente, nos damos conta de que serão raríssimos os leitores que, desde o lançamento de As palavras e a coisas nos anos 1960, puderam acompanhar a leitura do texto com a consulta fácil e imediata a todas as essas ilustrações (e fontes textuais) citadas. Entretanto hoje, um jovem de vinte anos, ao ler este clássico pela primeira vez, pode simultaneamente, com toques rápidos numa pequena tela iluminada que carrega nas mãos, ver todas as imagens de crânios e ossos, criaturas do mar e do ar, plantas, sementes e dragões, comentadas por Foucault – antes apenas de longe “imaginadas” por nós, jovens leitores do mundo pré-internet.
Quais os efeitos dessa nova forma de leitura? Quais as consequências dessa facilidade de acessos, dessa leveza nas consultas paralelas, para um jovem em formação (e para nós mesmos, leitores mais temperados)? Essa profusão de informações contribui para o aguçamento do seu olhar sobre a obra, ou de algum modo prejudica um contato mais concentrado com as palavras de Foucault?
Não tenho respostas para essas perguntas, surgidas ao observar meus alunos fascinados com as figuras da Prosa do Mundo. Mas me parece certo que vemos instaurar-se, no estudo e no ensino das humanidades, uma nova forma de ler.
Novamente recorro a Unsworth para comentar este caso. Em Knowledge Representation in Humanities Computing, o autor alerta para o tamanho das mudanças epistemológicas em jogo nas humanidades frente ao contato com as tecnologias computacionais (em particular no plano das representações do conhecimento) – entre outros fatores, destacando seus impactos sobre a formação de novos humanistas. Inscritas na lógica digital, as novas gerações encontrarão formas inteiramente novas de relacionarem-se com a documentação deixada pelas gerações passadas, fazendo transformar-se isso a que hoje denominamos “as humanidades”.
“The assertion of this paper is that the methodology known as knowledge representation has profound implications for humanities computing, and through humanities computing, has the potential to change the way humanities scholarship is done, to change the nature of graduate education in the humanities, and to change the relationship between the humanities and other professions, let alone other disciplines. I believe that knowledge representation has already produced important new research, and will, in the future, bring us new insights into what we know about the human record, and how we know it”.
John Unsworth, Knowledge Representation in Humanities Computing, 2001.
Vemos portanto que os pesquisadores se dividem: enquanto uns vêm nas “Humanidades Digitais” uma moda passageira e um tanto irritante, outros vislumbram transformações epistemológicas profundas.
Será aqui interessante notar que nesse debate, muitas vezes, encontramos as defesas mais aguerridas do valor do campo das Humanidades Digitais entre aqueles que vieram dos campos mais tradicionais, como a filologia e a crítica textual, e que contam com mais anos de estrada no caminho iniciado por Roberto Busa no pós-guerra.
É o caso, por exemplo, de Gregory Crane. Para esse classisista, as novas ferramentas digitais fazem vislumbrar a criação de “um espaço dinâmico para a vida intelectual que será tão diferente do precedente como a cultura oral é diferente da cultura escrita”:
“The tools at our disposal today, primitive as they may appear in the future, are already adequate to create a dynamic space for intellectual life as different from what precedes it as oral culture differs from a world of writing”.
Gregory Crane et al, When books talk to their readers, 2008.
Parece-me interessante a posição de Crane, por ser ele um renomado classisista. De fato: a passagem da tradição homérica do paradigma impresso para o paradigma digital não é nada mais assustador ou aviltante que a passagem da tradição homérica do paradigma manuscrito para o paradigma impresso – afinal, o que são etapas diferentes nas formas de difusão escrita, quando se estuda uma tradição que se inicia sem qualquer forma de registro escrito?
Noutros termos: será que quanto mais nos distanciarmos desse tema, melhor será mesmo nossa perspectiva? Deixo aqui esta pergunta aberta.
Vemos em resumo que, nos extremos, há de um lado uma visão eufórica frente às transformações provocadas pelo uso do digital nas humanidades, e de outro lado uma visão negativa muito forte, tomando as “Humanidades Digitais” como uma moda passageira e superficial. Entretanto, essa polêmica metodológica toma também contornos institucionais e políticos, como veremos agora.
[ ^ ]
Desafios institucionais e políticos
A visão das Humanidades digitais como uma moda passageira é um problema com reflexos institucionais claros. Aqui quero apontar dois.
O primeiro é bem concreto e material, remetendo aos recursos necessários para as pesquisas. Os que construímos corpora, bases de dados, visualizadores de mapas… terminamos por fazer uma pesquisa que costuma demandar mais recursos, materiais e humanos, que a pesquisa tradicional em humanidades.
Università Cattolica del Sacro Cuore, Milão, 194~: Digitadoras da equipe de Roberto Busa.
Melissa Terras, For Ada Lovelace Day – Father Busa’s Female Punch Card Operatives (Meus agradecimentos à Dália Guerreiro por encontrar esta imagem).
Estamos longe de precisar do exército de digitadoras empregado por Roberto Busa no pós-guerra. Mas ainda assim, precisamos de uma certa estrutura para nossos projetos nem sempre presentes nos ambientes das humanidades: precisamos de mais pessoas, precisamos de mais espaço, e, evidentemente, precisamos de máquinas. O problema, muitas vezes, é fazer com que as instituições que nos abrigam compreendam isso. As instituições que abrigam humanistas interessados em pesquisas com forte relação com campos computacionais precisam estar preparadas para um novo paradigma: se não vêm o valor dessas pesquisas, não nos apoiarão com a estrutura nem o apoio institucional necessário.
Um segundo ponto no qual o trabalho em Humanidades Digitais esbarra em desafios institucionais remete às particularidades dos produtos das nossas pesquisas. O produto característico da pesquisa em humanidades é o livro, o artigo acadêmico. Mas nas humanidades Digitais, a tendência é que isso seja complementado – e às vezes suplantado – pela produção de recursos eletrônicos. Assim, além da falta de apoio institucional em termos de abrigo, muitos pesquisadores apontam para o problema das dificuldades na valoração dos produtos tecnológicos no momento das avaliações de carreira. Voltamos portanto ao problema da Digital Scholarship: como já vimos, a “publicação acadêmica digital” pode incluir algo mais que a simples publicação de formas antigas como monografias ou livros traduzidos ao meio digital – pode incluir a publicação de bases de dados, corpora, bibliotecas inteiras; e, ainda, a participação acadêmica em formas nativas digitais, como os blogues e redes sociais (ambientes inteiramente estrangeiros para a tradição acadêmica).
Alguns especialistas já começam a apontar para o que muitos de nós estamos sentindo há tempos: o descompasso entre os produtos da pesquisa em humanidades com tecnologias computacionais e o que se espera dos pesquisadores nas instâncias valoradoras. É o caso de Kathleen Fitzpatrick, em particular a partir de sua obra Planned Obsolecence:
“The fact of the matter is that scholarly communication itself is in a period of profound change, profound enough that change itself is the only certainty”. (…)
“Scholars today are communicating with one another and making their work public in a range of ways that were only beginning to flicker into being in 2002. Many faculty maintain rich scholarly blogs, either on their own or as part of larger collectives, through which they are publishing their work; others are working on a range of small- and large-scale corpus building, datamining, mapping, and visualization projects, all of which seek to present the results of scholarly research and engagement in rich interactive formats. Projects in a wide range of digitally-inflected fields across the humanities, sciences, and social sciences are both using and developing a host of new methodologies, both for research and for the communication of the results of that research. And these projects are not just transforming their fields, but also creating a great deal of interest in scholarly work amongst the broader public.” (…)
“However, I do want to be clear about something: What I am arguing here today is not that digital projects of whatever variety should be treated as the equivalent of a book or a journal article. In fact, attempting to draw those equivalences can get us into trouble, as digital work demands its own medium-specific modes of assessment. Digital projects are often radically open, both in their mode of publication and their mode of peer review; they are often process-oriented, without a clear moment of “publication” or a clear completion date; they are very frequently code-based, and often non-linear, in ways that require that they be experienced rather than simply read. And too often review processes eliminate that possibility; not only do our forms rank web-based work as unimportant, but our processes require that such work be printed out and stuck in a binder. This is clearly counter-productive; we cannot continue evaluating new kinds of work as if it has been produced and can be read just like the print-based work we’re accustomed to.”
Kathleen Fitzpatrick, Planned Obsolecence, 2011.
Frente a esse descompasso, temos visto surgir algumas estratégias fundadas pelos próprios pesquisadores.
De um lado, vemos o recente surgimento de novas editoras de livros digitais com perfil claramente acadêmico, como o Open Edition:
Open Edition, www.openedition.org
Outro caso interessante é o fenômeno da incorporação das formas de publicação típicas da internet, como o blog, pelos acadêmicos. Este pode ser um fenômeno ainda marginal, mas ao que mostram os raros estudos, é um fenômeno crescente.
“The call to seriously consider forms of new media such as blogging, YouTube and Twitter as part of academic scholarship is growing louder and louder.”
Adeline Koh, The Challenges of Digital Scholarship, 2012.
Um exemplo de plataforma de blogagem acadêmica é o Hypotheses:
Hypotheses, hypotheses.org
A iniciativa Hypotheses traz à baila questões extremamente relevantes para os debates mais recentes sobre as mudanças nos hábitos de publicação acadêmica. A mais flagrante, certamente, é esta questão da “valoração” do material assim publicado – ou seja, que valor a comunidade de pesquisas, as instâncias de avaliação de carreira, e mesmo as agências de fomento à pesquisa atribuem à publicação nesses novos espaços de comunicação, como blogs, sites ou redes sociais? Do intenso debate em torno desse problema, tem se destacado a ideia de que a curadoria desses espaços pode ser um caminho para seu reconhecimento como abrigo de materiais científicos de qualidade. Seja como for, em algum momento, termos que engrenhar esse problema – pois ele vem se aproximando como uma força inevitável, por mais que alguns queiram ignorá-lo.
Por fim, algo de realmente novo e extremamente interessante é o surgimento de novas formas de publicação acadêmica – distantes do livro, distantes do artigo, distantes do blog – como no projeto Media Commons, com o sistema de open review, ou revisão por pares aberta.
Media Commons, mediacommons.futureofthebook.org
Nada disso, entretanto, está ainda contemplado nos nossos sistemas institucionais de análise de carreira. Ao menos, não em todos os casos:
“Change comes slowly to the academy, and often for good reason, but we find ourselves at a moment in which uneven development has become a bit of a problem. Some faculty practices with respect to scholarly work have in recent years changed faster than have the ways that work gets evaluated. If we don’t make a considered effort to catch our review processes up to our research and communication practices, we run the risk of stifling innovation in the places we need it most.”
Katheleen Fitzpatrick, Evolving standards and practices in tenure and promotion reviews, 2014.
De fato, aqui, parecemos estar diante de um problema de distribuição muito desigual das novas tendências.
Isso pode ser ilustrado por um pequeno detalhe, que é o detalhe da língua. O mundo das publicações online sobre Humanidades Digitais – considerando aqui as publicações digitais, abertas, modernas, inovadoras – é um mundo anglófono. Mesmo o mundo dos blogs acadêmicos, na realidade, parece também não fugir disso, apesar dos esforços de projetos como o Hypotheses no sentido do multilinguismo. A realidade desse anglocentrismo, e suas consequências para o campo, vem sendo apontadas por diversos autores:
Marin Dacos, La stratégie du Sauna finlandais, 2013.
“En el ámbito internacional de las humanidades digitales (HD) existe actualmente una importante discusión en torno a su definición y a la delimitación de su comunidad. Numerosas voces (Dacos 2013, Fiormonte 2012 y McPherson 2012) indican que las estructuras y dinámicas internacionales de las HD favorecen a académicos de países anglófonos (sobre todo de Estados Unidos, Canadá y Reino Unido) en detrimento de académicos de otras partes del mundo.” Ernesto Priani et al., Las humanidades digitales en español y portugués. Un estudio de caso: DíaHD/DiaHD, 2014,
Podemos seguir falando em iniciativas inovadoras, em um projeto Global, quando esta barreira linguística ainda está colocada?
Com isso chegamos aos nossos derradeiros desafios: os Políticos. Sabemos que, nos anos recentes, muito recurso financeiro vem sendo aplicado nas Humanidades Digitais. Por exemplo – podemos citar as seguintes cifra: segundo o levantamento de Terras, 2012, entre 2007 e 2011, apenas o National endowment for the Humanities dos EUA financiou U$ 15,268,130 milhões de dólares em pesquisas ligadas às Humanidades Digitais. Não tenho em mãos um levantamento internacional; mas posso afirmar que a situação no Brasil, diante desse número, é simplesmente risível. Portanto: o investimento não é constante entre países, e portanto, a possibilidade de realizar as pesquisas também não.
A primeira razão é evidente – os recursos não estão homogeneamente distribuídos pelo mundo, como já sabemos. Mas isso se agrava no caso da pesquisa em Humanidades Digitais – simplesmente porque há países que já contam com uma “base tecnológica” mais desenvolvida em geral, independente das Humanidades Digitais, enquanto em outros países, toda esta base está ainda para ser desenvolvida. Assim, paradoxalmente, os países nos quais há menos recurso disponível acabam sendo, justamente, aqueles onde mais recursos seriam necessários.
Um exemplo de um tipo de recurso de base cujo estado atual de desenvolvimento é muito desigual ao redor do mundo é a própria infra-estrutura para a transmissão de dados por via digital. Tocaremos aqui apenas superficialmente em um problema de imensa gravidade – a exclusão digital. Podemos observar claramente como esse problema se relaciona com a distribuição desigual de “centros de Humanidades Digitais” que vimos anteriormente: os pontos do globo onde vimos uma presença aparentemente menos intensa de pesquisas em Humanidades Digitais são também os pontos do globo nos quais a infra-estrutura (física e lógica) da internet é menor: onde a rede é menor, menos densa, menos inter-conectada. É o que mostram (muito superficialmente) os mapas a seguir.


Combinado com o problema linguístico, o problema da exclusão digital coloca o desafio das “Humanidades Digitais Globais” em uma perspectiva ainda mais desafiadora.
Se de um lado acreditarmos que, no futuro próximo, toda institucionalidade, toda prática, toda heurística das humanidades estará modificada pelo digital, veremos a gravidade das consequências da exclusão digital neste debate. Nesse cenário, a manutenção da situação de desigualdade nas formas de acesso à rede não significaria apenas que alguns pesquisadores e algumas partes do mundo, por ficarem fora “do digital”, correm o risco de não poder participar da comunidade das “humanidades digitais”. Efetivamente, se acreditarmos que no futuro próximo todas as humanidades serão digitais, os pesquisadores nesses pontos do globo correm o risco de não poder participar da comunidade das Humanidades – ponto final. Como humanistas, temos a obrigação ética de cuidar desse problema.
As soluções mais abrangentes para a exclusão digital e a má-distribuição de recursos tecnológicos são conhecidas e fogem do escopo da nossa conversa. Aqui – além da defesa da inclusão digital de um modo amplo, e da inclusão dessa bandeira em todas as plataformas de defesa das humanidades digitais em particular – podemos terminar mencionando algumas saídas em um horizonte mais próximo, mais possível, e mais limitado às nossas possibilidades de atuação enquanto pesquisadores acadêmicos, como tento fazer a seguir.
[ ^ ]
Por Fim
Um caminho que faria desdobrarem-se bem todas as pontas desafiadoras do mapa das “Humanidades Digitais Globais” que aqui tentamos desenhar – as pontas metodológicas, as institucionais, e as políticas – é a manutenção e a ampliação do acesso aberto e da internet livre.
A inclusão digital, certamente, passa por fatores que dependem de investimentos financeiros e decisões políticas em grande escala, como a construção e ampliação da estrutura física e tecnológica da rede. Mas passa, também, pela questão da concepção da rede: queremos, com a internet, um sistema que una os principais centros do capitalismo financeiro, maximizando seus lucros; ou um sistema democrático de comunicação cultural e científica? Parece-me que, pela sua epistemologia, as humanidades se aproximam fortemente dessa última concepção. E, se a dimensão das trocas culturais é o valor mais importante que vemos na internet, estamos (ainda que muitos sem saber) no campo da luta pela internet livre a aberta. Na minha visão, a luta pela inclusão digital acadêmica não faz sentido a não ser como luta pela democratização do acesso à rede.
Essa opção pelo campo do acesso aberto engendra também, ao mesmo tempo, um bom caminho para o problema institucional da nossa relevância acadêmica, ao considerarmos o potencial de retorno social representado pelo livre acesso aos produtos das nossas pesquisas. Isso é especialmente visível quando falamos dos projetos de digitalização de grandes bibliotecas, arquivos e museus: o engajamento cada vez mais intenso de pesquisadores de diferentes áreas das humanidades nos grandes projetos de digitalização tem contribuído para um aumento no volume de documentos relativos ao patrimônio histórico e cultural da humanidade na internet, e para um adensamento da qualidade da rede (aspecto menos imediatamente notável que o do volume, mas talvez ainda mais importante). Um segundo exemplo, menos lembrado, é a tendência da publicação acadêmica em meios digitais – seja na forma dos repositórios de teses e periódicos especializados, seja (talvez principalmente) na forma de ambientes não estritamente acadêmicos, como é o caso dos blogs. Nesses ambientes, damos a ver nossos trabalhos a um público mais amplo na sociedade, o que tem impactos potenciais na formação cultural desses leitores. Nos dois casos (reforcemos) o retorno social só se dá plenamente se o acesso for livre, irrestrito, para toda a comunidade acadêmica e para todo o público leitor potencial, em todos os pontos do globo.
Nesse ponto quero apontar para um detalhe sobre o problema do “acesso livre” que é extremamente importante, mas muito pouco lembrado: a importância da diversidade linguística da internet. É no mínimo duvidoso defendermos a inclusão digital se não lembrarmos que para grande parte da população mundial, “ter acesso” a um conteúdo digital significa, também, poder ler e compreender esse conteúdo. Nesse sentido, e lembrando aqui a abrangência global da língua portuguesa, termino esta reflexão ressaltando como a luta pelo acesso aberto na internet tem sido bem representada por conteúdos em língua portuguesa. No âmbito acadêmico, essa participação positiva, me parece, se explica por dois fatores.
De um lado, o Brasil tem contribuído de modo exemplar para o conteúdo de acesso aberto nas publicações acadêmicas, digitais e em pleno acesso aberto. Nesse âmbito o caso pioneiro é o SciELO, iniciativa brasileira de 1997, hoje mundialmente acessada, por mais de um milhão de pesquisadores por dia.
SciELO, Scientific Eletronic Library Online, www.scielo.br
De outro lado, um fator talvez mais marcante – por sua abrangência e visibilidade para além do público acadêmico – foi o pioneirismo de Portugal na área da digitalização de bibliotecas e acervos públicos, um pioneirismo em escala mundial. Como consequência, temos hoje acesso livre aos magníficos repositórios digitais dos arquivos nacionais portugueses representados aqui na Torre do Tombo, e na Biblioteca Nacional de Portugal.
Biblioteca Nacional de Portugal – Biblioteca Nacional Digital, purl.pt
Não é demais lembrar que essa foi uma das primeiras bibliotecas no mundo a iniciar o processo de digitalização, já no início da década de 1990. Para o pesquisador de documentos na língua portuguesa, isso representou um avanço descomunal – inimaginável, talvez, para os pesquisadores que estão mais próximos a esses arquivos preciosos.
Eu falo neste momento muito particularmente (e talvez mesmo, muito emotivamente) do ponto de vista de um pesquisadora brasileira. De fato, se me puser a recordar o passado, e se posso dar um toque pessoal a este ponto da fala, irei me lembrar que meu primeiro trabalho feito com base em um texto digitalizado foi nos finais dos anos 1990, quando preparava minha tese, graças ao (então novo) site da BN portuguesa. Na época, tratava-se de uma grande novidade, que nos enchia de admiração… e foi graças a isso que consegui fazer pesquisas que em outros tempos não teriam sido possíveis, estando eu tão longe dos arquivos. Assim, hoje eu tenho a oportunidade de agradecer por esta iniciativa, in loco.
Para além desse toque mais pessoal, me parece importante, e emblemático, que possamos terminar essa fala falando em Portugal.
Mostrei aqui alguns mapas com as “conexões” da rede de computadores, como tentativa de entender quais as reais possibilidades para as humanidades digitais globais… Neste último mapa que vimos, os contornos dos continentes se deixam vislumbrar de forma muito sutil ainda, como que ainda indescobertos por essa nova forma de navegar.

Essa imagem das interconexões internéticas sempre me lembra, imediatamente, uma outra imagem de contornos sugeridos de continentes ainda a ser descobertos – em especial a minha terra, a América do Sul: o famoso Planisfério de Cantino, desenhado em circunstâncias misteriosas nos idos de 1052.
Com este desenho inicial das costas do novo mundo de então, termino esta fala, esperando que os novos continentes agora desenhados pela luz dos feixes dos fluxos de dados venham a se unir de modo completo, assim como nossos continentes foram unidos pelos navios dos primeiros navegantes do Atlântico, há cinco séculos. Foi navegando por essas águas que alguns portugueses pioneiros tornaram a humanidade consciente de sua unidade – e fizeram do mundo um Globo:
“Foram os pioneiros portugueses e os conquistadores castelhanos da orla ocidental da cristandade que uniram, para o melhor e para o pior, os ramos enormemente diversificados da grande família humana. Foram eles, ainda que vagamente, os primeiros a tornar a humanidade consciente de sua unidade essencial.”
Charles Boxer, O Império Marítimo Português, 2002.
Se queremos, mesmo, ver nas Humanidades Digitais as Humanidades Digitais Globais, talvez tenhamos que dar a essa ideia o sentido que Charles Boxer deu a Humanidade e Global no contexto das navegações quinhentistas – o sentido quase que da “invenção” de uma humanidade, da invenção do globo, pela ligação de todos os pontos dessa esfera onde todos navegamos.
[ ^ ]
As Humanidades Digitais Globais?
Maria Clara Paixão de Sousa
Universidade de Évora, 6 de outubro de 2015
Universidade Nova de Lisboa, 8 de outubro de 2015
Universidade de Coimbra, 12 de outubro de 2015
Referências
[ abrir ]
Roteiro
1. Definições
….– Humanidades Digitais, o termo
….– Para além do termo
2. Estado da arte
….– Panorama das Humanidades Digitais
….– O problema dos panoramas
3. Perspectivas
….– Desafios metodológicos
….– Desafios institucionais e políticos
[ ^ ]