Origens e problemas fundadores
Este tópico abre o debate sobre o surgimento do termo ‘Humanidades Digitais’, na tentativa de explicá-lo no contexto de alguns embates conceituais originados nos impactos trazidos pelas tecnologias computacionais para as disciplinas da tradição humanística.
Nossa perspectiva é a de que o termo ‘Humanidades Digitais’ – talvez, mais propriamente, o termo ‘Digital Humanities’ – é um rótulo até certo ponto artificial (no sentido de que seu surgimento não é exatamente espontâneo, e sim uma proposta calculada) para um conjunto de práticas e debates orgânicos que se acumularam a partir do trabalho de alguns pesquisadores de diferentes áreas das humanidades que lançaram mão da computação de modo intensivo. Como vamos ver, o uso da computação por algumas pesquisas em humanidades (sobretudo nas linhas ocupadas com o texto e a textualidade, como a filologia, a linguística e os estudos literários) precede em muito a moda em torno do termo – remetendo, de fato, ao início da informática, com os projetos de Roberto Busa já na década de 1940.



During World War II, between 1941 and 1946, I began to look for machines for the automation of the linguistic analysis of written texts. I found them, in 1949, at IBM in New York City. Today, as an aged patriarch (born in 1913) I am full of amazement at the developments since then; they are enormously greater and better than I could then imagine.
Digitus Dei est hic! The finger of God is here!
Roberto Busa, Perspectives on the Digital Humanities, 2004.
Onde Busa viu ‘o dedo de Deus‘, outros viram… nada.
E assim é que, 63 anos depois dos primeiros experimentos de Busa, ‘surge’ um campo de pesquisas ‘imensamente inovador’ em torno do digitus, que se autodenominará ‘Digital Humanities‘ – a partir do título do livro
A Companion to Digital Humanities (Schreibman et al., 2004), segundo Mathew Kirschenbaum (2012).

Mais que isso: meio século depois da invenção das primeiras máquinas inteligentes capazes de processar textos, percebemos estar no ‘limiar‘ de uma revolução tecnológica da cultura escrita. A defasagem entre a introdução de uma técnica e a percepção social de suas implicações não deveria causar surpresa: é próprio das revoluções tecnológicas serem invisíveis no seu tempo, como nos lembra Charles Gere:
Consider how someone in Europe in the late fifteenth century might have understood the development of printing. However educated he or she might have been it is unlikely that they could have grasped the full implications of this new media technology, or the dramatic effects it would have on Western and, eventually, global culture and society. His or her way of thinking would have evolved within and for a particular ‘media ecology’, and thus would not be fit for comprehending new emerging media conditions. It is surely far more likely that, in the late fifteenth century at least, printing would still have been regarded as an extension or more efficient scribal practice, a kind of prosthesis or substitute for the production of texts by hand, not as the means for a wholesale transformation of the intellectual environment. We are perhaps at a similar moment in our understanding of the transformations being wrought by our new technologies.
Charles Gere, Digital Culture, 2002.
Será portanto nos primeiros anos de 2000 que a comunidade acadêmica passará a se mostrar sensível às consequências epistemológicas, institucionais e políticas da aliança entre disciplinas tradicionais e a computação já iniciada por Busa nos anos 40 – uma tomada de consciência que irá gerar inúmeros debates sobre a própria definição do termo ‘Humanidades Digitais’, como se resume aqui.
Mas…
Em que medida podemos chamar a introdução da computação na difusão do texto uma ‘revolução tecnológica‘?
Até que ponto esta introdução modifica as disciplinas tradicionais das humanidades?
Onde é que, de fato, a computação e as humanidades se encontram; onde é que essas duas hermenêuticas aparentemente tão díspares confluem?
Ou – afinal, o que é que Roberto Busa viu no processamento automático de textos que lhe pareceu um toque do ‘dedo de deus’ – do ‘digitus dei’?
Estas perguntas norteiam todos os temas a serem tratados no curso.
Para explorá-las, iremos interrogar alguns aspectos importantes sobre ‘o digital’, (digitus!); irei também sugerir alguns fatores que possam explicar esta ‘súbita’ sensibilidade frente aos impactos do ‘digital’ nas humanidades a partir dos anos 2000, em particular no ambiente acadêmico anglo-saxão, onde o termo ‘Digital Humanities‘ e todo o debate conceitual em torno dele aparecem originalmente.
Ligações interessantes
Para construir e contextualizar este debate sobre as origens das ‘Humanidades Digitais’ iremos examinar alguns projetos que podem ser chamados de ‘pioneiros’ no uso da computação em humanidades, alguns dos quais continuam ativos até hoje, em diferentes formatos. Em particular:



Bibliografia específica
Para este tópico, examinaremos com particular atenção os seguintes itens da bibliografia sugerida (por favor, veja ali as referências completas):
Busa, 1980, 2004; Bamman & Crane, 2010; Crane et al., 2008; Fraser, 1998; Gere, 2002; Hockey, 2004; Jones, 2016; Kirschenbaum, 2010; Laue, 2004; Leiner, 2012; Nelson, 1965; Orlandi, 1999; Paixão de Sousa, 2013; Priani Saiso et al. 2014; Schreibman et al., 2004 (introduction).