Institucionalidades
e desafios políticos
Este tópico tenta examinar algumas implicações políticas e institucionais que muitas vezes apenas tangenciam o debate em torno das ‘Humanidades Digitais’ – mas que tomaremos como pontos centrais. Alguns pesquisadores enxergam no surgimento de iniciativas sob este rótulo mais que um campo de pesquisas, e sim a formação de uma nova cultura acadêmica. Diante das formas pouco ortodoxas de agregação características do campo, esses pesquisadores têm afirmado que uma das características centrais das Humanidades Digitais é a de desafiarem o sistema universitário e a organização acadêmica tradicional. Até que ponto é razoável esta afirmação – e, se ela faz sentido, de que modo isso se relaciona com a desigualdade na distribuição de recursos materiais para a ciência em geral, e para as disciplinas das humanidades em particular?
A perspectiva ‘radical’ sobre as Humanidades Digitais – ou seja, a perspectiva daqueles que remetem, com este termo, não apenas a uma nova metodologia ou mesmo um novo campo do conhecimento, mas sim, pura e simplesmente, a uma nova cultura acadêmica, até certo ponto independente da institucionalidade tradicional das universidades – só pode ser bem compreendida, a meu ver, no ambiente anglófono.
Ali, têm sido tantos e tão candentes os debates em torno das ‘Digital Humanities‘ que alguns pesquisadores têm falado em um campo em eterna crise de identidade, enquanto outros têm enxergado nesta crise uma crise das próprias humanidades. É o que salienta Jan Christoph Meister no excelente artigo “As Humanidades digitais somos nós, ou a insustentável leveza da metodologia compartilhada”. Para Meister, essa crise de identidade se reflete numa transformação semântica do próprio termo, na qual teria já acontecido um apagamento da relação de qualificação entre “Humanidades” e “Digitais”, formando-se um termo congelado, plasmado, terceiro. Isso se mostraria entre outros no neologismo e-Humanities, e-Humanidades, que já começa a aparecer em alguns autores:
Identity crises abound: until yesterday we did Humanities Computing, today it’s Digital Humanities, and the more common our practice becomes the shorter and less descriptive its designation seems to get, as the somewhat opaque neologism eHumanities proves. From a linguistic and philosophical point of view the change in terminology, and in particular the emerging next-generation terminology, signals a gradual naturalization of the concept by way of an obscuration of the predicate-argument structure. The evolving newspeak adds to the plethora of terminological nouveau vague constructs whose differentia specifica is marked by a single letter. From iPhone to iHumanities is but a step”.
Jan Cristoph Meister, DH is us or on the unbearable lightness of a shared methodology, 2012.
Antes de chegarmos, como teme Meister, às i-Humanities, i-Humanidades, precisamos contextualizar o debate, como já tentei sugerir ao dizer que a discussão de Meister e outros autores de aplica, sobretudo, ao ambiente anglófono: ele precisa ser compreendido em um contexto no qual há grande disparidade entre ambientes acadêmicos ao redor do mundo quanto a esta questão.
Quero observar, aqui, que os desafios políticos e institucionais que envolvem as assim chamadas ‘Humanidades Digitais’ superam o problema do uso do termo e de toda a ‘moda’ em torno dele. Refletem, a meu ver, desafios políticos e institucionais colocados para a prática das disciplinas humanísticas hoje – tocando, no limite, num risco existencial para essas disciplinas.
De fato, ao discutir As ‘Humanidades Digitais Globais’?, em 2015, sugeri haver três dimensões importantes nos desafios institucionais e políticos colocados pela intensificação do uso de tecnologias computacionais nas humanidades: a dimensão política e linguística; a dimensão institucional, sobretudo quanto à valoração dos produtos de pesquisa; e a dimensão material da desigualdade na distribuição de recursos, culminando na exclusão digital.
Podemos começar a conversa pela dimensão linguística do problema, uma vez que esta pode ilustrar mais imediatamente a diferença entre os ambientes acadêmicos nos quais o debate em torno do digital é candente e os ambientes onde ele é incipiente. Para isso recorro ao trabalho coletivo apresentado em Priani Saiso et ali, 2014, quando buscamos ‘mapear’ as ‘Humanidades Digitais/Humanidades Digitales’ no mundo de fala ibérica.
Para Meister (2012, 78) lo digital en las HD significa que diversas disciplinas humanísticas comparten un grupo de metodologías comunes identificadas como digitales. En el caso de las HD en español y en portugués éstas son sobre todo herramientas y aplicaciones textuales relacionadas con la creación de corpus, pero su utilización todavía no se valora, de manera definitiva y por parte de toda la comunidad, como una práctica que modifique de manera total el concepto de humanidades”. (…)
Ernesto Priani Saiso et al., Las humanidades digitales en español y portugués. Un estudio de caso: DíaHD/DiaHD, 2014
“Dicho en otras palabras, una característica de la emergencia de las HD en español y en portugués es la tensión entre la resistencia a asumir que las humanidades se definan por lo digital y el interés por agruparse y discutir bajo esa terminología”. (…)
“En suma, el giro semántico de las humanidades en castellano y portugués hacia las humanidades digitales, se produce aún con dificultades en la identificación de los humanistas como humanistas digitales. Esto muestra dos cosas, por un lado, subraya el hecho de que el giro se produce desde las humanidades (la filosofía, la historia, la filología, la lingüística, la literatura) hacia lo digital; por otro, muestra los distintos grados de compenetración de los miembros de la comunidad con el discurso de las humanidades digitales”.
Estas particularidades do ‘giro semântico’ das Humanidades para as Humanidades Digitais (e Digitales) pode ser bem ilustrada, ainda, pelo seguinte mapa, produzido por Marin Dacos, que mostra o absoluto domínio da anglofonia nas instâncias de publicação acadêmica voltadas às Humanidades Digitais (ou melhor dito, de fato, ‘Digital Humanities’):

Como observamos em Priani Saiso et al., 2014, não são poucas as vozes que já se fazem ouvir em contraponto ao domínio anglófono nas discussões sobre a conjunção entre as humanidades e o mundo digital; além de Dacos, 2012, é de se destacar neste ponto o trabalho de Domenico Fiormonte, em particular Fiormonte 2016, 2017.

Este problema das línguas se mostra particularmente perverso quando se conjuga com as outras duas dimensões dos desafios colocados para as humanidades frente às tecnologias digitais – a dimensão institucional, em particular no que remete às instâncias de publicação e divulgação das pesquisas e seus produtos, e a dimensão material, no que remete à desigualdade de recursos disponíveis para a pesquisa.
O problema das instâncias de publicação e divulgação acadêmica preocupa sobretudo, no contexto atual, por sua estreita relação com os mecanismos de avaliação profissional nos ambientes universitários e com a valoração social do trabalho em pesquisa no âmbito das humanidades. A crux da questão é que, porquanto as ‘Digital Humanities’ caracterizam-se pelo amplo uso de formas ‘alternativas’ de publicação acadêmica (por exemplo, em blogs e outros ambientes abertos na internet), na maior parte dos casos tais formas não são valorizadas institucionalmente, trazendo para o pesquisador o estranho dilema entre publicar seus trabalhos ou trazê-los ao público – publicar ou publicar, como sugeri também aqui (num blog!).

Resta a dimensão mais estritamente material do problema – a questão da distribuição de recursos financeiros para as pesquisas. Quanto a isso, vamos olhar alguns números brutos (e alguns deles, brutais) sobre a distribuição geográfica das pesquisas em ‘Humanidades Digitais’ no mundo e sobre a distribuição de recursos materiais para as pesquisas filiadas ao rótulo:

Recursos aplicados em projetos nas ‘Digital Humanities’ (Terras, 211):
- National Endowment for the Humanities, EUA, 2007-2011 (250 projetos):
U$ 15.268.130 (R$59.290.729) - Joint Information Systems Commitee, UK, 2008-2011:
£966.691 (R$4.816.802) - Arts and Humanities Research Council, UK, 2008-2011 (330 projetos):
£121.500 (R$605.637) - Andrew W. Mellon Foundation, 2010:
U$30.870.667 (R$119.880.061)
Total dessas quatro agências, 2007-2011:
R$184.593.229
A falta de recursos para a pesquisa nas ‘Humanidades Digitais’ tem uma particularidade, frente à falta de recursos para a pesquisa em humanidades em geral: lançar mão de tecnologias computacionais requer recursos (financeiros e técnicos) que fogem inteiramente ao controle e às possibilidades da maior parte dos pesquisadores. Assim, por mais preocupante que sejam as informações sobre a distribuição de recursos para pesquisas, o problema da escassez material não se restringe a isso – mas sim é um problema mais geral, que deságua, de fato, na contingência da má distribuição de recursos tecnológicos ao redor do globo, e no problema da exclusão digital.

Levando em conta todos estes aspectos, naquela discussão de 2015 sobre as ‘humanidades digitais globais‘, chego a uma constatação que pode parecer catastrofista, mas que de fato continua me preocupando:
Combinado com o problema linguístico, o problema da exclusão digital coloca o desafio das “Humanidades Digitais Globais” em uma perspectiva ainda mais desafiadora.
Se de um lado acreditarmos que, no futuro próximo, toda institucionalidade, toda prática, toda heurística das humanidades estará modificada pelo digital, veremos a gravidade das consequências da exclusão digital neste debate. Nesse cenário, a manutenção da situação de desigualdade nas formas de acesso à rede não significaria apenas que alguns pesquisadores e algumas partes do mundo, por ficarem fora “do digital”, correm o risco de não poder participar da comunidade das “humanidades digitais”.
Efetivamente, se acreditarmos que no futuro próximo todas as humanidades serão digitais, os pesquisadores nesses pontos do globo correm o risco de não poder participar da comunidade das Humanidades – ponto final.
Como humanistas, temos a obrigação ética de cuidar desse problema.
As ‘Humanidades Digitais Globais’? | Ciclo de conferências, 2015 | https://humanidadesdigitais.org/hd2015/anotacoes
Nesta oportunidade, ao dar forma final a este breve curso, quero colocar esses aspectos mais uma vez em debate. Sugiro que as transformações tecnológicas do último quarto de século colocam desafios e impõem transformações profundas às disciplinas tradicionais das humanidades; sugiro, ainda, que essas transformações envolvem uma dimensão política e institucional muito concretamente materializada no problema dos recursos disponíveis para a pesquisa (e, portanto, uma dimensão que toca o problema da valoração social das pesquisas em humanidades).
Vamos mais longe. Se isso é verdadeiro no âmbito mais amplo das ‘Humanidades’ com maiúscula e no geral – de que modo particular interpela as humanidades em língua portuguesa, ‘no coração do hemisfério sul, na América, num claro instante‘?
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul
Na América, num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias’
Ligações interessantes
Para ilustrar esta reflexão sobre os desafios das ‘Humanidades Digitais’ fora da anglofonia, visitaremos algumas pesquisas em língua portuguesa que podem ser consideradas pioneiras no uso das tecnologias computacionais no trabalho filológico no Brasil – uma lista que, longe de ser exaustiva, apenas reflete os projetos dos quais tenho conhecimento próximo.
Por conta do recorte temático do nosso curso, a lista aqui reunida não contempla bem a área mais produtiva e populosa das pesquisas em Humanidades Digitais sobre a língua portuguesa: a chamada linguística de corpus. São muitos e muito bons os projetos de construção de corpora do português, no Brasil e em Portugal; nossa lista inclui apenas os projetos envolvidos com corpora do português histórico, feitos no Brasil, e que lançam mão de ferramentas computacionais de modo intensivo. Uma lista completa e curada dos corpora do português pode ser encontrada na Linguateca – https://www.linguateca.pt
Ainda por conta do foco temático do curso, vamos examinar projetos em duas ‘pontas’: além dos projetos dedicados a edição filológica e anotação linguística em corpora do português histórico construídos no Brasil, também a ‘outra ponta’, ou seja, os projetos brasileiros dedicados à construção de repositórios digitais de documentos com interesse filológico.
1. Projetos brasileiros de edição filológica e anotação linguística do português histórico com uso intensivo de ferramentas computacionais

e-Dictor – Software para edição filológica e anotação linguística automática | Unicamp – USP | http://www.edictor.net







DELPo – Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa | NEHiLP – USP | https://delpo.prp.usp.br

M.A.P. – Mulheres na América Portuguesa | USP | http://map.prp.usp.br
2. Repositórios digitais brasileiros de documentos com interesse filológico





(adendo – repositórios sediados em Portugal)



Bibliografia específica
Para este tópico, examinaremos com particular atenção os seguintes itens da bibliografia sugerida (por favor, veja ali as referências completas):
Banza & Gonçalves, 2014; Castells, 2003; Dacos, 2013; De Rosnay 2012; Fiormonte, 2016, 2017; Fitzpatrick, 2011; Gold, 2012; Lucía Megías, 2010; McCarty, 2010; Meister, 2012; Orlandi, 1999; Paixão de Sousa, 2015, 2018; Priani Saiso et al. 2014; Svensson, 2010; Verdelho, 2004; Zorich, 2008.