As Humanidades e as tecnologias digitais: Uma provocação inicial

Maria Clara Paixão de Sousa


Ramelli, Agostino, 1531-ca. 1600. Le diverse et artificiose machine del capitano Agostino Ramelli
Ramelli, Agostino, 1531-ca. 1600. Le diverse et artificiose machine del capitano Agostino Ramelli… Beinecke Library, Yale

O estabelecimento das tecnologias digitais como ambiente de difusão da informação trouxe desafios importantes para as disciplinas ligadas às humanidades. O maior deles, talvez, seja o de  lidarmos com uma forma de organização da escrita e da leitura absolutamente nova, pois artificialmente mediada – falo de artifícios lógicos, e não mecânicos (como os idealizados por humanistas como Ramelli), por isso inéditos.

Nossas respostas a este desafio têm sido variadas. Alguns de nós seguimos pensando que conduzimos nossas pesquisas no século XX. Outros procuram participar do ambiente das tecnologias digitais como usuários mais ou menos proficientes. Mas poucos cientistas humanos têm se comportado como sujeitos dessas tecnologias, e raros são os que as têm abordado como objeto de reflexão crítica aprofundada.

Proponho a este grupo iniciarmos alguns passos no caminho da reflexão crítica sobre a relação entre as humanidades e o mundo digital, com a perspectiva de contribuir para a fundação de um corpo metodológico e investigativo sobre esta relação na comunidade de pesquisa brasileira.

Acredito que essa reflexão não apenas é relevante no atual contexto acadêmico, como toma, de fato, um caráter de urgência, se as humanidades desejam assumir um papel ativo no desenvolvimento da sociedade do conhecimento atual, rejeitando o papel coadjuvante num processo de transformação liderado por outras forças.

Para nos tornarmos parte ativa neste processo, precisamos abordá-lo com o rigor crítico característico das humanidades, o que significa, entre outros aspectos, abordá-lo a partir de um distanciamento minimamente informado. Para isto, precisamos, antes de tudo, compreender profundamente as tecnologias digitais, estudar profundamente seu funcionamento, como é próprio das humanidades no tratamento de seus campos de estudo. Acredito que a nossa postura crítica característica se beneficiará do conhecimento assim adquirido também como um instrumento a ser dominado – permitindo-nos unir a perspectiva sobre a informação digital como objeto teórico ao domínio da tecnologia digital como ferramenta da nossa construção de conhecimento.

Ao propor este caminho e este debate, estou partindo da constatação de que o meio digital estabeleceu-se irreversivelmente como o ambiente por excelência de difusão da informação a partir já dos primeiros anos deste século, e da convicção da importância de se discutir sobre os sentidos, os efeitos, as implicações sociais, culturais e científicas desse processo:

  • Em que medida as possibilidades abertas pelo meio digital modificam o grande campo a que chamamos “as humanidades”? 
  • Em que medida os limites estabelecidos pelo meio digital modificam este grande campo? 
  • Podem as humanidades permanecer imunes aos efeitos das novas formas de circulação do conhecimento? 
  • E, se não podem – que sentidos podemos conferir a essas novas formas?

Vejo no campo chamado de “Digital Humanities”, ou Humanidades Digitais, um espaço que pode abrigar o debate em torno dessas questões. Esse campo de pesquisa e inovação poderia ser descrito como radicalmente interdisciplinar. Melhor que isso: trata-se de um campo que parece romper os limites entre as disciplinas tradicionais, por unir historiadores, filósofos, filólogos e linguistas a matemáticos, cientistas da computação e desenvolvedores de software. É, além disso, um campo que pretende unir a reflexão crítica característica das humanidades ao impulso experimental do desenvolvimento de novas formas de tratamento da informação, confluência que me parece essencial para o desenrolar dos debates.

Na minha visão, há hoje diversos pesquisadores no Brasil trabalhando com as “humanidades digitais” – sem necessariamente fazer uso deste nome. É o caso de linguistas envolvidos com projetos de computação e matemática; de literatos que se ocupam da poesia no meio digital; de historiadores, sociólogos e antropólogos cujas pesquisas utilizam e geram bancos de dados eletrônicos; de cientistas da informação envolvidos na construção de bibliotecas e outros acervos digitais…

Minha proposta, com este grupo, é reunir alguns desses pesquisadores, aproveitando a diversidade das nossas experiências de pesquisa e as nossas inquietações em torno das formas correntes de produção e difusão da informação, para iniciar um caminho mais aprofundado de reflexão.

Assim – e para finalizar retomando o ponto pelo qual comecei – poderemos colaborar para a construção do protagonismo que as humanidades podem assumir no desenvolvimento da sociedade da informação do nosso século.

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